Regulamentada no Governo Bolsonaro, a revisão do ato de reforma dos militares tem gerado muita repercussão, pois a Lei nº 13.954 de 2019 previu a possibilidade de a administração militar rever os atos de concessões de reformas a qualquer momento.
Então não existe mais direito adquirido, ato jurídico perfeito, nem mesmo a obediência à coisa julgada? Não, pois, pasmem, por meio do Decreto nº 10.750, de 2021, o Presidente Bolsonaro foi mais além e incluiu por meio do decreto a possibilidade de a administração militar poder rever inclusive as reformas concedidas pelo Poder Judiciário.
O erro jurídico é grave, pois até o mais iniciante dos estagiários de Direito sabe que não é possível, por meio de um decreto, inovar matéria na ordem jurídica, dispondo de forma diversa o que está previsto em lei. No entanto, ao se analisar a origem da redação do texto, é perfeitamente compreensível sua escrita, pois é próprio da caserna a centralização do poder daqueles que detêm o comando e o, consequente, desejo de querer as coisas ao seu tempo e modo, ainda que subjugando os outros e violando o direito, como ocorreu com o decreto.
As praças e militares temporários das Forças Armadas reformados estão sendo os maiores prejudicados, por isso que mobilizados pela Associação ABEM do Brasil, assessorada pelo Escritório Januário Advocacia, apresentaram um parecer à Deputada Federal Erika Kokay do PT/DF, a qual encampou a luta e propôs um projeto de decreto legislativo.
A tramitação do Projeto de Decreto Legislativo nº 118/2023 está bem adiantada – já teve parecer favorável do Relator Deputado Roberto Duarte na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) – e visa suspender as revisões das reformas que estão sendo promovidas à margem da lei.
Para se ter uma ideia das ilegalidades no âmbito do Exército Brasileiro, cito o caso do soldado Raimundo que era vinculado à 12ª RM, este militar foi reformado em 2001 em razão de problemas na coluna, que no passado resultou no reconhecimento da invalidez segundo a Junta Médica, sendo inclusive portador de inquérito sanitário de origem (ISO). Para aqueles que não têm familiaridade com o direito administrativo militar, resta esclarecer que o ISO – Inquérito Sanitário de Origem – é o documento médico-legal que comprova que o militar adquiriu a doença e/ou lesão no exercício do serviço militar.
Para a surpresa do Soldado Raimundo, ele foi convocado depois de 22 (vinte e dois) anos para uma inspeção de saúde em grau revisional, recentemente, em que, (i) foi afastada a invalidez, sendo reconhecida somente a incapacidade para o serviço militar e (ii) os médicos militares enquadraram a doença no inciso VI, do artigo 108 do Estatuto dos Militares(doença sem nexo com o serviço militar), mesmo o soldado Raimundo sendo portador de documento sanitário de origem (DSO).
Em razão da revisão, o ex-soldado Raimundo – depois de 22 (vinte e dois) anos na condição de reformado – foi desligado do Exército Brasileiro, mesmo estando acometido das mesmas lesões que motivaram a sua reforma. Raimundo, atualmente, com 47 (quarenta e sete anos) de idade, doente, praticamente sem condições de se inserir no mercado formal de trabalho, vive dependendo da caridade de amigos e familiares, já que não tem condições físicas para exercer outra profissão.
A situação é preocupante e eu vejo claramente um resquício do período da Ditadura Militar na redação do Decreto, lembrando-me também daquela piada do sujeito que morre e chega no inferno, onde o Diabo passa a lhe apresentar os vários infernos que lá existiam: o inferno dos políticos, dos magistrados, dos advogados… Mas um inferno em específico lhe chama a atenção, o inferno dos militares. A razão era uma só: não existiam capetas vigiando e atormentando ninguém. Respondendo à indagação de um recém-chegado ao inferno, disse o Diabo:
“O inferno dos militares não precisa de capeta vigiando e atormentando, pois eles mesmos se prejudicam uns aos outros e, quando um militar quer sair do inferno, os outros o puxam novamente para dentro.”
A piada é triste, mas espelha bem a realidade das Forças Armadas, uma Instituição respeitável e necessária, mas que atualmente está ainda mais dividida entre sujeito de direito (titular de direitos) e sujeito sem direito. Aos oficiais de carreira, todos os direitos lhes são conferidos, já às praças e militares temporários cabem receber o tratamento na medida de sua utilidade prática, e muitos só vão conhecer essa realidade quando adoecerem, por isso não podemos ignorar a dor do próximo, a dor do ex-soldado Raimundo também é nossa, pois não se abandona um militar dessa forma.
Então esta é a situação de insegurança jurídica enfrentada pelos militares reformados das Forças Armadas, uma vez que, a qualquer momento, eles podem ter a reforma cassada, o que é um absurdo, pois tal procedimento só ocorre com os militares (e certamente praças e militares temporários). Nem mesmo os servidores federais e os aposentados pelo INSS estão sujeitos à medida semelhante, mesmo os crimes têm prazos prescricionais, os atos administrativos também (Lei nº 9.784, de 1999), mas os militares recebem o tratamento precário de subcidadãos.
E se você, militar reformado, for convocado para uma inspeção de saúde revisional, saiba que o problema apresentado tem solução, consulte um advogado ou uma advogada.
Wolmer de Almeida Januário
Advogado OAB/SP 398.062
Instagram: @wolmerjanuario