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A repetibilidade de verbas de caráter alimentar recebidas por particular, em razão de tutela de urgência contra a fazenda pública posteriormente cassada

Por Murilo Rosa

Trata-se o presente artigo de uma análise crítica acerca da disposição do inciso I do art. 302 do Código de Processo Civil e da Tese fixada pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Tema Repetitivo n. 692, quando utilizados pela Fazenda Pública para embasar requerimento de devolução aos cofres públicos de verbas alimentares recebidas pelo particular, em razão de tutela de urgência deferida e posteriormente revogada em processo judicial.

De início, para melhor ilustrar a hipótese que será tratada no presente artigo, imagine-se a seguinte situação fictícia: Dona Maria, mãe solo, que a vida inteira trabalhou como empregada doméstica, sofre um acidente que a retira a capacidade para o trabalho, por 180 dias (6 meses), razão pela qual requer administrativamente ao INSS a concessão de benefício por incapacidade temporária (auxílio-doença), cujo pedido lhe é negado.

Com a negativa da Autarquia, Dona Maria – assistida pela Defensoria Pública da União – promove ação judicial contra o Ente Público, requerendo a concessão do benefício por incapacidade temporária, em sede de tutela de urgência, o qual, diante do preenchimento dos requisitos legais, é deferido no início do processo. Dona Maria, então, passa a receber o benefício previdenciário que é utilizado para prover a própria subsistência e a de seus filhos, ainda que de forma temporária.

Posteriormente, com o contraditório estabelecido, é proferida sentença reconhecendo a improcedência dos pedidos iniciais e revogando a tutela de urgência deferida no início do processo, razão pela qual Dona Maria – que ainda está incapacitada para o trabalho de empregada doméstica – tem o pagamento do benefício “cortado”, voltando a depender de familiares para prover o próprio sustento e o de seus filhos.

A sentença transita em julgado e o INSS promove cumprimento definitivo de sentença, requerendo que Dona Maria devolva aos cofres públicos todos os valores que recebeu enquanto a tutela de urgência, que foi cassada, estava vigente, que, com juros e correção monetária, perfazem aproximadamente R$100.000,00 (cem mil reais).

A princípio, para quem nunca teve a oportunidade de desbravar o Código de Processo Civil e a jurisprudência, o pedido do INSS, no caso fictício acima trazido, pode parecer um tanto quanto absurdo, desaguando na seguinte indagação: “Ora, como alguém em situação de vulnerabilidade social busca o Poder Judiciário para ter um direito garantido e sai com uma dívida de aproximadamente R$100.000,00 (cem mil reais)?”.

Apesar de a situação parecer ilegal e imoral, em um primeiro momento, o art. 302, do Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/15), define que a responsabilidade pelos prejuízos causados à parte adversa, em razão da efetivação da tutela de urgência, é de quem a requereu, independentemente da reparação por dano processual. A parte que requereu a tutela de urgência, portanto, responderá objetivamente: a) se a sentença lhe for desfavorável; b) se a tutela for obtida liminarmente em caráter antecedente e o requerente não fornecer os meios necessários para a citação do requerido, no prazo de cinco dias; c) se a medida perder a eficácia por força de dispositivo legal; d) se o juiz acolher a alegação de decadência ou prescrição da pretensão do autor.

Assim, o referido dispositivo legal permite que a parte beneficiária da tutela de urgência posteriormente cassada em sentença ou acórdão responda pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa, e é com base neste dispositivo legal que a Fazenda Pública busca o ressarcimento das verbas pagas ao particular, enquanto a liminar estava vigente, ainda que elas tenham caráter alimentar e tenham sido recebidas de boa-fé pelo beneficiário da tutela de urgência.

O citado permissivo legal ocasiona, então, um embate principiológico, pois é evidente que a busca da Fazenda Pública pelo ressarcimento das verbas de caráter alimentar recebidas pelo particular, em razão de tutela de urgência posteriormente cassada, colide frontalmente com diversos princípios legais e constitucionais.

Nessa trilha, o Superior Tribunal de Justiça adotava entendimento no sentido da impossibilidade da devolução dos proventos percebidos a título de benefício previdenciário, em razão do seu caráter alimentar, incidindo, portanto, o princípio da irrepetibilidade dos alimentos (REsp n. 446.892/RS, relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em 28/11/2006, DJ de 18/12/2006, p. 461.), cujo entendimento foi superado por aquela Corte que, recentemente, no dia 11/05/2022, concluiu a revisão do Tema 692, dos Recursos Repetitivos, reafirmando a tese de que “a reforma da decisão que antecipa os efeitos da tutela final obriga o autor da ação a devolver os valores dos benefícios previdenciários ou assistenciais recebidos, o que pode ser feito por meio de desconto em valor que não exceda 30% (trinta por cento) da importância de eventual benefício que ainda lhe estiver sendo pago”.

Portanto, o entendimento recente e qualificado do STJ é no sentido de permitir a devolução aos cofres públicos dos valores de benefícios previdenciários ou assistenciais recebidos, em virtude de tutela antecipada posteriormente cassada, permitindo, inclusive, que essa devolução seja feita por descontos que não excedam a 30% (trinta por cento) da importância de eventual benefício que ainda lhe estiver sendo pago, nos termos, também, da atual redação do art. 115, da Lei n. 8.213/91.

Nesse sentido entendeu o Superior Tribunal de Justiça em caso recentemente submetido à sua análise:

        PROCESSUAL CIVIL. ACIDENTE DO TRABALHO. RESTITUIÇÃO DE VALORES RECEBIDOS A TÍTULO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. BOA-FÉ DA PARTE AUTORA E CARÁTER ALIMENTAR DA VERBA. IRREPETIBILIDADE. POSICIONAMENTO DO STF. PREVALÊNCIA DO ACÓRDÃO COMO PROFERIDO. DECISÃO MANTIDA. DESPROVIMENTO DO AGRAVO INTERNO. MANUTENÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA.

        I – Na origem, trata-se de ação objetivando o restabelecimento do auxílio-doença acidentário, desde a cessação administrativa e, após a conclusão do processo de reabilitação. A sentença julgou parcialmente procedente a ação acidentária. No Tribunal a quo, a sentença foi parcialmente reformada.

        II – O Superior Tribunal de Justiça, sob a sistemática dos recursos especiais repetitivos (Tema 692/STJ), firmou entendimento no sentido de que “A reforma da decisão que antecipa os efeitos da tutela final obriga o autor da ação a devolver os valores dos benefícios previdenciários ou assistenciais recebidos, o que pode ser feito por meio de desconto em valor que não exceda 30% (trinta por cento) da importância de eventual benefício que ainda lhe estiver sendo pago”.

        III – No caso, o Tribunal de origem concluiu ser indevida a devolução dos valores recebidos em tais circunstâncias em razão da boa-fé e do caráter alimentar dos valores, recebidos. Ao assim decidir, contudo, divergiu do entendimento desta Corte, uniformizado sob o rito dos julgamentos repetitivos. Nesse sentido: REsp n. 1.599.497/PR, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 4/5/2017, DJe de 17/5/2017.

        IV – Dessarte, os valores pagos à parte recorrida a título de tutela antecipada, posteriormente revogada, devem ser repetidos, por meio de desconto em valor que não exceda 30% (trinta por cento) da importância de eventual benefício que ainda lhe estiver sendo pago.

        V – Agravo interno improvido.

        (AgInt no REsp n. 2.067.449/SP, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 25/9/2023, DJe de 27/9/2023.)

Por oportuno, há de se destacar que as prestações previdenciárias e assistenciais, como no caso trazido como exemplo, possuem caráter alimentar, pois quem as recebe, a princípio, as utiliza para manter sua subsistência, buscando garantir a observância do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal).

Assim, a tese fixada pelo STJ impõe aos segurados e beneficiários da Previdência Social (como no caso do exemplo aqui trazido) situação mais gravosa que a anterior, pois permite a cobrança da devolução dos valores correspondentes a benefícios assistenciais – cujo caráter emergencial é notório e a base normativa é diversa da legislação previdenciária.

Não se pode olvidar, ainda, o fato de que o beneficiário da tutela de urgência recebe de boa-fé as verbas de caráter alimentar dela oriundas. Neste ponto, ainda que a decisão que defere a tutela de urgência seja provisória e precária, o pedido liminar é uma faculdade concedida pelo Código de Processo Civil à parte que o requer, assim, se a parte requerente da tutela de urgência pode sofrer “sanções” ao requerê-la (e eventualmente obtê-la), não faz sentido, portanto, fazê-lo, o que pode representar um manifesto cerceamento de direito.

Há, também, a possibilidade de a tutela de urgência ser deferida de ofício pelo Juízo, situação na qual, caso seja posteriormente cassada, o beneficiário também terá que devolver os valores recebidos.

Não se ignora o fato de que o requerente da tutela de urgência, que geralmente está devidamente representado por profissional habilitado, tem prévia ciência quanto à provisoriedade, precariedade e revogabilidade da medida liminar, entretanto, tal direito só é chancelado após decisão judicial. Portanto, a efetivação da tutela de urgência surge com o seu deferimento, que é ato proveniente do Poder Judiciário.

Dessa conclusão, portanto, extrai-se que, na verdade, o fato gerador da efetivação da tutela de urgência – que pode causar prejuízo à parte adversa – é o seu deferimento em decisão judicial, razão pela qual não parece ser razoável atribuir somente à parte que a requereu a responsabilidade de reparar os eventuais prejuízos causados à parte contrária.

Assim, o risco de repetição das verbas de caráter alimentar recebidas por particular, em detrimento da Fazenda Pública, em razão de tutela de urgência posteriormente cassada, não se trata de um risco meramente processual, mas também um risco social, cabendo ressaltar, ainda, que a devolução dessas verbas não representa risco ou dano ao Poder Público, se comparado com os impactos causados aos Particulares, que na maioria dos casos são pessoas em situação de vulnerabilidade social.

A situação deve ser, portanto, ponderada pelo Poder Judiciário, utilizando-se de sua função social e dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, a fim de corrigir eventuais injustiças causadas pela jurisprudência e pela Lei.

Neste ponto, cabe mencionar que o Supremo Tribunal Federal, atualmente, não analisa essa questão, por entender que a matéria nela tratada é infraconstitucional, o que afasta a repercussão geral (Tema 799/STF). Contudo, em decisões esparsas sobre a matéria, o Supremo Tribunal Federal assentou entendimento pelo descabimento de restituição de verbas alimentares recebidas pelo beneficiário de tutela de urgência posteriormente cassada (vide MS 25921 AgR, ARE 734242 AgR e AI 829661 AgR).

Diante desse impasse jurisprudencial, em homenagem ao princípio da segurança jurídica, deve ser observado o entendimento do Supremo Tribunal Federal que, ao julgar o MS 32185/DF, firmou o entendimento de ser desnecessária a restituição de parcelas recebidas por decisão judicial posteriormente revogada, em razão de mudança da jurisprudência, nos seguintes termos:

        Ementa: Direito Constitucional e Administrativo. Embargos de Declaração em Mandado de Segurança. Decisão do TCU que recusou registro ao ato concessivo de aposentadoria em razão de indevida incorporação aos proventos do percentual de 84,32%. Devolução de valores recebidos por ordem judicial revogada. 1. A jurisprudência do STF afirma a desnecessidade de restituição de parcelas recebidas por decisão judicial posteriormente revogada em razão de mudança da jurisprudência. A orientação ampara-se: (i) na confiança legítima que tinham os beneficiários de a pretensão ser acolhida; e (ii) no lapso temporal transcorrido entre o deferimento da liminar e a sua revogação. Precedentes. 2. No caso em análise, a liminar foi deferida em 09.07.2013, com fundamento em antiga jurisprudência que reconhecia a oponibilidade da coisa julgada ao TCU de decisão judicial que reconhecia o direito a incorporação de parcelas remuneratórias. A revogação da liminar ocorreu em 15.08.2017, em razão de mudança dessa jurisprudência desta Corte. Assim, os princípios da boa-fé e da segurança jurídica afastam o dever de restituição de parcelas recebidas por ordem liminar revogada. 3. Embargos de declaração providos para sanar omissão, sem efeitos modificativos. (MS 32185 ED, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 24/10/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-169  DIVULG 02-08-2019  PUBLIC 05-08-2019)

Portanto, se a tutela de urgência foi cassada em razão de mudança de jurisprudência, o entendimento do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que não há dever de restituição das parcelas recebidas enquanto a decisão liminar estava vigente, em razão dos princípios da boa-fé e da segurança jurídica.

Ora, nem tudo que é legal, é justo – e vice-versa –, razão pela qual cada situação deve ser analisada particularmente, sopesando-se os princípios basilares da Constituição Federal e do Código de Processo Civil, bem como o entendimento dos Tribunais Superiores sobre a matéria que, apesar de não ser, a princípio, uníssono, garante ao particular certa proteção.

A esperança do Particular está no Supremo Tribunal Federal que, apesar de atualmente não apreciar a matéria de forma vinculante, possui entendimentos esparsos que são utilizados em alguns casos nos Tribunais Regionais Federais (TRF 3ª Região, 10ª Turma, AI – AGRAVO DE INSTRUMENTO – 5004783-61.2019.4.03.0000, Rel. Desembargador Federal MARIA LUCIA LENCASTRE URSAIA, julgado em 17/07/2019, Intimação via sistema DATA: 19/07/2019; TRF 3ª Região, 9ª Turma, ApelRemNec – APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA – 0012546-89.2013.4.03.6183, Rel. Desembargador Federal JOAO BATISTA GONCALVES, julgado em 15/04/2021, Intimação via sistema DATA: 20/04/2021). Ao Particular resta, ainda, uma esperança residual no Poder Legislativo, que pode alterar a legislação, especialmente o inciso II do art. 302 do Código de Processo Civil.

Por fim, cabe ao Advogado instruir o cliente sobre todos os riscos do processo judicial, inclusive no tocante à possibilidade de devolução das verbas a serem recebidas em caso de revogação de tutela de urgência, e buscar na própria jurisprudência as possíveis correções para as injustiças por ela mesma criadas.

 


Murilo Rosa, bacharel em Direito pela Univerdade de Uberaba, Advogado inscrito na OAB/MG sob nº 197.285, integra o Time Januário Advocacia na Carteira de Petições Intermediárias e Recursais.

https://www.migalhas.com.br/depeso/366815/tema-692-stj–devolucao-de-valores-recebidos-por-tutela-antecipada

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